100K DE BIEL/BIENNE



Agradeço a todos aqueles que torceram por mim. Aos que comentarem e me incentivaram. Aos que não comentaram mas que mesmo assim torceram para que eu chegasse ao fim. E principalmente, aqueles que correram comigo.
Não fiz os cem quilómetros sozinho, além do meu irmão Paulo que me acompanhou de pasteleira a maior parte da corrida, senti sempre aquele poder místico, uma coisa inexplicável. Apesar da distância houve pensamentos positivos que chegaram até mim (alguns em forma de sms).

Em nenhuma parte da prova me assaltou a ideia de a não conseguir terminar. Foram 13h19m de cansaço, mas de um prazer e alegria enorme.



Desde logo, desde a partida, vi que não podia ir com o ritmo que tinha planeado, se queria chegar ao fim tinha que fazer as coisas mais calmas. Mas os primeiros quilómetros foram feitos sem me preocupar com isso. As ruas de Bienne estavam cheias de gente a apoiar os atletas (muito diferente de Portugal e eram 22h). havia festa na cidade e eu participava dela, por isso deixei-me levar palas palmas, pelos cumprimentos, pelo entusiasmo geral. Era preciso concentrar-me para não começar muito rápido; bem, concentro-me lá mais para a frente.
A minha prova tinha começado 1 km antes da partida, demorei-me mais tempo a equipar que o normal, muito mais tempo, um nervoso miudinho apoderou-se de mim. Duvidas de última hora sobre as sapatilhas que levar, depois de as ter escolhido há mais de um mês. Prendo o dorsal à camisola com ela vestida ou é melhor antes de vestir? Para que entendam melhor: não sabia o que fazer ao chip de controlo. Se fosse a primeira vez que via uma coisa daquelas… há coisas inexplicáveis e aquelas horas antes foram isso: inexplicáveis. Depois de descalçar e voltar a calças as sapatilhas, lá resolvi descalçá-las novamente para enfiar o chip nos atacadores. Vaselina. Pensos rápidos. Polar ligado e saio do sítio onde me estava a equipar para a partida por volta das 21h55m. 5 minutos antes do tiro. Foi o quilómetro menos um, foi o mais rápido de todos.
Nessa altura ainda não sabia se ia ter a companhia do meu irmão Paulo durante a prova. Ainda não tinha conseguido arranjar uma bicicleta, os telemóveis estavam a funcionar à procura de algum Português emigrante em Bienne que pudesse disponibilizar uma assim em cima da hora, contava com a ajuda do Telmo, emigrante naquelas paragens e que é da minha terrinha (Peso-Covilhã). E este foi o meu primeiro objectivo intermédio: chegar aos 20Km para saber se tinha a bicicleta.
O plano geral era o seguinte: ir a um ritmo, em plano, na bitola dos 6 a 7 min/Km. Água, levava na mão e sempre à disposição para ir bebericando. Nos abastecimentos da organização beber bebidas desportivas. Sólidos de hora a hora compostos por frutos secos, marmelada, bananas e barras energéticas. Não tenho grandes problemas digestivos com as bebidas e a comida, por isso não me preocupei em adaptar às que ia encontrar nos abastecimentos. No entanto, pelo sim pelo não, levava comigo a comida que habitualmente uso (excepto as bananas). Os abastecimentos da organização foram dos melhores que eu já vi, em qualidade, em quantidade e em variedade. Havia coca-cola, bebida que eu aprecio e me cai sempre bem. Só um reparo: não havia umas “mines” no final…
Antes da passagem dos 20Km, na meta da meia-maratona, de novo uma multidão apoiante. Era perto da meia-noite, depois de termos já passado por entre campos cultivados onde só a lua, os frontais e o som das pegadas reinavam, eis de novo uma localidade em festa (Aarberg), o meu deslumbramento era enorme, passamos por uma ponte lindíssima, de madeira e coberta a fazer-me lembrar “as pontes de Madison County”. Tive pena de não ter tirado uma foto naquele sítio.
Um pouco mais à frente a placa que assinalava os 20Km. Pouco mais de 2h de corrida, ia com um super-tempo (o que pode ser mau para uma ultra-maratona) no entanto ainda não tinha havido nenhuma dificuldade maior e os abastecimentos tinham sido rápidos. Havia ainda grande concentração de atletas, o que me fazia, inconscientemente, ir a um ritmo elevado. Faço um ponto da situação: estou muito rápido mas estou com o planeamento de hidratação “em dia”.



E eis que numa curva, numa outra localidade (Lyss), esta sem tantos apoiantes, surge o meu irmão montado numa pasteleira. Dorsal: Coach. Seguimos juntos. Foi-me contando as peripécias que passou para arranjar a bicicleta 1h30m depois do tiro de partida e da viagem da partida até ali, porque só ali podíamos ser acompanhados por um ciclista. Primeiro objectivo alcançado. Próximo objectivo: chegar à meta da maratona. Lá fomos numa agradável conversa, pela noite dentro, ainda tentei tirar umas fotos e fazer uns vídeos mas claro que nada ficou bom, tudo muito escuro, não se via nada. Frontal a alumiar a estrada, conversa e mais conversa que era sempre boa para aliviar o peso dos quilómetros. A verdade é que eu ia cansado, com um ritmo mais baixo do que o previsto ia fazendo a comparação com as maratonas já realizadas. Sentia-me em pior forma do que em qualquer uma delas. Apesar disso em nenhuma parte desta ultra me assaltou o espírito a palavra desistir. Inexplicavelmente a minha confiança de que iria terminar a prova nunca ficou abalada. A minha parte psicológica estava fortíssima apesar de achar (cada vez mais) que as dores na região da fossa poplítea direita e que me levaram a parar de correr por completo as duas semanas antes eram dores psicológicas. (eu podia ter dito: dores na parte detrás do joelho, mas como eu andei a pesquisar sobre estas dores e encontrei este termo técnico, achei por bem “enfia-lo” aqui. Recorri outra vez ao livro para saber como se escreve e sei que daqui a algum tempo o nome desta região não me vá soar estranho, se bem que eu já não deva saber de que região se trata: talvez lá para os lados da Rússia…)
Avancemos até à meta da maratona (Oberramsern) que para mim chegava um pouco antes dos 40 kms. De notar que todos os atletas que não estavam a fazer os 100 Kms, levavam um dorsal atrás a informar disso mesmo (maratona, estafeta) e partiram 30 minutos depois e davam mais umas voltas em Bienne. Nos abastecimentos que coincidiam com a meta da maratona livrei-me de algumas coisas que levava comigo, aligeirei a carga, aqui já confiava plenamente na organização e achei que não necessitava de ir tão carregado. Os abastecimentos eram sempre feitos nas calmas, assim: metia a passo e aproximava das bancadas, parava, bebia uns copos de bebida desportiva, comia qualquer coisa, enchia o bidão de água, apanhava um copo de coca-cola, continuava a passo a beber a cola, 50 metros à frente copo no lixo e… voltar a correr.
Passado mais este objectivo seguimos para o próximo: a placa dos 50Km. Mas logo ali à frente muita acção: um telefonema de Portugal (energia pura que só por si já dava para chegar ao fim) e cai um companheiro à minha frente, por pouco não caí por cima dele (ia distraído com o telefonema e era noite escura), mas não foi nada, pergunto: OK? Que é linguagem universal, responde: OK! Levantou-se do chão sem mazelas, e lá continuamos.
A noite estava escura e era alumiada por um monte de frontais, nunca tinha visto isto, pareciam centenas de pirilampos, quando se olhava para trás, que vinham a marcar a estrada por onde tínhamos passado. Ao olhar para a frente não se via muita coisa, uma ou outra luz vermelha que sinalizava algum atleta ou ciclista. Ainda bem que era assim, não tínhamos uma noção do que ainda faltava para correr, para mim o caminho resumia-se a uma dezena de metros que o meu frontal iluminava e tornava visível. Ao olhar para trás percebo o longo caminho que já percorri, percebo também que há pelo menos uma centena de atletas mais atrasados.
Km 50. Uma foto à placa para ficar na memória, não nos passou pela cabeça pousarmos ao lado da placa para a posterioridade, desconfio que mesmo que nos tivesse passado isso pelo espírito o resultado não teria sido bom, era noite e a máquina fotográfica era o telemóvel.
«Já só faltam cinquenta quilómetros. Outros tantos. Metade.» disse o meu coach. Aquilo não me pareceram palavras de incentivo, pareceram-me mais palavras de desânimo. Digo eu: «Não podes pensar assim, porque assim não chegamos lá. Agora faltam dois quilómetros para trocar de equipamento e depois logo se vê. Não podemos pensar nos cinquenta quilómetros que faltam, são muitos quilómetros.»
E rumamos ao abastecimento, que afinal era ao km 56, onde estava previsto eu retocar o equipamento.

Kirchberg. Chegamos ao km 56. Aqui a organização fazia chegar sacos de corredores que assim o desejassem. Havia muitos apoiantes que se deslocaram até aqui. Tempo para um pequeno alto. Troquei de camisola, por nenhuma razão especial. Besuntei-me de novo com vaselina nas zonas habituais, de maior fricção, e dando especial atenção à zona que acusava já uma pequena assadura. Troquei as pilhas do GPS. Vesti umas coxas elásticas, nunca tinha corrido com elas, só as usei para recuperação após as corridas mais longas e aí posso dizer que ajuda, elas estavam como que por magia na mochila, achei que era um sinal do além… porque não? Qualquer sinal de desconforto retirava-as. Nunca me foram desconfortáveis, não sei se ajudou alguma coisa, mas voltava a usar.
Estava pronto para partir novamente, entretanto o meu irmão tinha adormecido ali deitado na relva. Deixo-o descansar mais um pouco, afinal ele tinha-se levantado cedo e tinha passado o dia a trabalhar, estava acordado à quase 24 horas. Sento-me na relva e tomo a decisão de partir dali quando tivesse 7 horas de prova, ainda falta uns minutos. Resisto à tentação de me deitar, se adormeço “é o fim da picada”. Ao todo estive parado de 20 a 25 minutos. Aproveito e deixo o frontal na mochila. O dia amanhece. Retomamos a corrida. Logo depois nova separação atleta/ciclista. Fomos informados que ia percorrer separado perto de 20 km, foram só 10.
Sigo por um caminho de terra, um “single trail”, justificação para a separação do atleta e do coach. A corrida na mata, com percursos de terra, é a minha favorita, porém não foi aqui: nesta aventura quase sempre que a corrida se desenvolvia em terra, eu e os meus pés suplicávamos por alcatrão. É que a terra tinha uma espécie de gravilha que não era agradável, além da irregularidade normal destes percursos. Por uns quilómetros o percurso desenrolou-se em terra (da boa, sem gravilha) e no meio de arvoredo cerrado, por causa disso o meu GPS “roubou-me” quase 1Km. A meta agora era reencontrar o meu irmão. Antes de separarmo-nos ele perguntou-me se ia desistir, claro que não, afiancei-lhe. E ele seguiu na sua missão de chegar ao local do reencontro e dormir mais um pouco. Neste percurso passei muitos atletas, no entanto não estava a andar depressa demais, fui sempre num ritmo controlado. Depois de dez quilómetros o reencontro e seguimos de novo em conjunto. Agora o objectivo era chegar aos 90Km para fazer o telefonema e para me irem esperar à meta.
Foi o parcial mais longo. Não digo que foi o que me custou mais porque isto de custar mais ou custar menos é muito relativo em 100 Km. Mas foi o que me deixou mais apreensivo. Sensivelmente do quilómetro 75 ao quilómetro 90 comecei a mijar com muita frequência (desculpem-me o calão, mas a vontade não era de urinar ou mictar… Mictar: parece uma coisa que tem de ser feita com fato e gravata, de preferência sentado para não acertar na tampa. Mijar: pode ser feito em qualquer lado de qualquer maneira). O medo agora era de desidratar. Continuava a transpirar, a urina saia transparente, pelo que não me parecia que estava a entrar num qualquer estado de desidratação ou de hiponatremia. Continuei a beber água sem esperar pela sede. Lembrei-me do que aconteceu ao Fernado A. que teve de abandonar uma prova de 100 km prematuramente. Comecei a procurar sal, lembrei-me dos frutos secos que tinha trazido, mas não tinham sal. Nos abastecimentos ainda dei uns goles numa sopa que o meu irmão me disse que estava salgada, mas pareceu-me intragável e tive receio que me provocasse vómitos. Lambi os braços: salgados. Esperava que isso fosse o suficiente até encontrar algo mais convencional, mas a verdade é que nunca senti sede nem qualquer mau estar, havia só inconveniente de parar de 15 em 15 minutos. E assim como apareceu, desapareceu lá pelo km 90.
Km 90. Altura para telefonar para casa a dizer que daí a uma hora e meia estaria na meta. Queria que estivessem à minha espera.

O percurso continuava na sua maioria por terra com muita gravilha e pedras que me castigavam os pés e os tornozelos. Nesta altura em que escrevo (18JUN), uma semana depois da prova, a única mazela que tenho é uma pequena dor na parte de fora do tornozelo direito. Claro que no dia seguinte à corrida a dor era generalizada, mas o que mais me consumia eram as dores nos pés e tornozelos. Fiz também algumas feridas que nunca me incomodaram: uma assadura entre as virilhas, umas pequenas na barriga por causa do cinto de hidratação, e acima do joelho por causa das coxas elásticas. Tirando isso nada mais. Os pés ficaram doridos mas sem nenhuma bolha, acho que isso se deve à excelência das meias e também das sapatilhas que usei. Apesar de não me terem livrado das dores dos pés e tornozelos, considero que são muito boas, tendo em atenção a diferença de preços entre as que usei as que teriam sido mais indicadas para ali. E não é garantido que outras sapatilhas seis vezes mais caras me fizessem chegar ao fim sem essas dores.
Penúltimo abastecimento. «Paulo, vamos embora, quero fazer abaixo das 13h30m.» “Respiro fundo e lembro-me da força que guardo dentro do meu corpo e espero que ela ouça.” E começo um contra-relógio, a única vez na prova em que me preocupei com o tempo final.
Último abastecimento: o mais rápido de todos.
Último quilómetro: a foto mais aguardada:
“É na busca mágica do último quilómetro que todos nós corremos.”
Vamos para a meta. A corrida revigorante dos últimos quilómetros deixaram-me com folga mais que suficiente para acabar abaixo das 13h30m. Quero saborear este quilómetro. Uma filmagem. A conversa final da prova:
- Gostaste? – Perguntei ao meu irmão.
- Gostei, para o ano vou eu correr.
Absorveu toda a emoção da distância.
-Alguma vez pensaste desistir? – Pergunta ele.
- Não, e tu? – Não foi fácil para ele, não estava habituado à bicicleta, e que bicicleta…
- Epá, aos 50 km já estava fartinho. Dos 75 aos 90 foi quando te custou mais, não foi?
- Não consigo dizer quais os quilómetros que me custaram mais.
O último quilómetro está a chegar ao fim. Ao fundo o meu irmão Pedro já acenava. «Já aí vem, conseguiu!». A Lorena nada admirada: «Eu sabia que conseguias. Consegues sempre!» diz isto como se tivesse sido uma corrida à volta da marina de Angra.
Ainda uma recta para ser aplaudido. Provavelmente muitos familiares e amigos de atletas que também estão quase a chegar. Eu também aplaudo: a prova, a organização, os apoiantes. Levanto as mãos em sinal de vitória. O locutor diz o meu nome: Ricardo Baptista, mais algumas palavras em alemão que eu não entendi. Apesar do cansaço, apesar de algumas dores: adorei, foi um espectáculo. Se pudesse se a vida permitisse: para o ano voltava a fazê-los. Uma medalha que o meu irmão Pedro desembrulha e me põe ao pescoço. Ainda tenho de ir buscar o diploma e a t-shirt que diz finalista. Passo pelos balneários e não resisto a um banho de água fria. Regresso a casa para descansar um pouco.
À noite o jantar é no Centro Português de Neuchâtel. Um bife à café paris. Muito bem servido embora que demorado. Enquanto espero pelo jantar vai passando pela memória os 100 km que tinha acabado de fazer. Uma experiência que fica marcada na memória. O Paulo está com vontade de para o ano ser ele a correr. O andar não era o melhor, era o possível. Parecia que tinha alguma deficiência. A levantar e a descer escadas era a pior altura: Ai, ai, ai, ai.
A medalha: oferecia ao meu irmão, acho que ele a mereceu. O facto de não estar habituado a andar de bicicleta e de me ter acompanhado com uma coisa daquelas. Também tinha dores.
Nos dias que seguiram sentia-me um herói. Eu sei que não sou: qualquer um é capaz de uma coisa destas. Sinto-me orgulhoso pelo meu feito. Gosto de ver a reacção das pessoas ao saberem, “100 km?”, e eu cá para mim:
- Até que nem foi muito difícil!
Ricardo Baptista, Junho 2010

Comentários

  1. Olá Ricardo,
    só hoje "descobri" o teu blogue e gosto muito do teu tipo de escrita.....embora não tenha feito (aínda) nada parecido, parece que consigo "sentir" o que descreves nesta tua odisseia. Deixo o meu comentário neste teu post por um motivo...é que em trabalho vou muitoas vezes à Suiça, tb a Bienne, e há uns anos atrás tive acesso a um artigo sobre esta prova que me ficou na memória...pouco tempo depois começei a correr, e até hoje esta ficou-me na memória até hoje, e quando chego ao teu blogue e vejo um post sobre a prova de Bienne fiquei curioso. Para 2013 vou-me iniciar nos trails em Portugal, nas calmas, só para "cheirar" o ambiente...e fazer a primeira ultra (talvez a da Geira Romana)...Bienne fica lá mais para a frente. Tens aqui mais um seguidor atento do teu blogue.
    Abraço e bons treinos

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