(1) ULTRA-TRAIL DA SERRA DE SÃO MAMEDE

«Só faltam 3 quilómetros e esta é a última subida, depois é sempre a descer até à meta!» E lá me "amandei" com gosto para a última subida, não gostei foi de ter virado costas para a cidade de Portalegre, pelo meu sentido de orientação estava a afastar-me e não a aproximar-me da meta. Passo económico e chego ao cimo da rampa, onde um tipo andava a treinar motocross, corro um pouco a direito e nova rampa, desta feita não muito longa, nem sei se poderia ser considerada rampa ou subida em comparação ao que já tinha passado, e eis que começo a descer... «Espera aí, o que é aquilo?» nova subida, dura,  então aquela não era a última? Parece que não, bem, o que tem de ser tem muita força e «vamos lá, catano!», "amandei-me" para a nova subida com garras. Nesta altura já ia a aguentar-me como podia, as reservas há muito que tinham sido gastas, as forças não passavam de uma recordação boa que tinha, agora era na raça que continuava a deslocar-me: "a direcção é mais importante que a velocidade" e era nisto que ia pensando enquanto pedia aos meus joelhos mais um pouco. Ao cimo da subida encontrei umas fãs animadas e ruidosas, como agradecimento do apoio ensaiei uma corrida até ao topo da "curva da morte", mereci uns aplausos e um "like" nas minhas meias personalizadas, cheias de magia e vibrações positivas que me ajudaram a percorrer estes trilhos e os tornaram muito mais fáceis.
Agora já descia de novo em direcção a Portalegre, mais uma viragem à esquerda e de novo a informação da quilometragem que faltava: «Faltam 3 quilómetros!»
A corrida continuou por entre bairros e ruas alcatroadas até que ao fim de uns 3 quilómetros vejo no chão pintado a branco uma seta com a indicação «Falta 1 Km», e eu pensei: «Está quase, só falta 1 quilómetro.» Pensei mal, sei agora que a seta indicava o sítio para onde ficaria a faltar o tal último quilómetro, os meios de medição ficaram um pouco avariados nesta última parte. Sigo monte abaixo, um muro para saltar quando as forças já não existem e por sorte não me espalhei, e até à meta no quilómetro mais comprido das fitas métricas e cumulativamente (a meu ver, claro) o quilómetro mais mal marcado de todo o UTSM. Depois de três ou quatro hesitações neste último percurso lá chego ao estádio, «agora é que só faltam 400 metros», e vou já saboreando esta vitória, emoção à flor-da-pele, consegui completar 100 km, estes por montanha num sobe e desce duro. Agradeço aos meus joelhos, a todas as outras articulações, às pernas e a todos os outros músculos. Faltam 200 metros. Diverti-me, suei, transpirei; tenho dores no corpo todo, sinto os pés feridos e as costas a arder das chagas da mochila. Olho para o céu, a lua nova ainda não aparece, agradeço ao universo ter-me proporcionado este momento. Nesta altura, mais que em qualquer outra, percebo porque me meto nisto, o sofrimento é passageiro, este orgulho que sinto, esta vanglória é mais que compensador. Recta da meta, faltam 100 metros, tiro o lenço para te sentir. Aplaudem, chamam pelo meu nome. Pórtico da meta. Levanto os braços: consegui! Não é que alguma vez tivesse duvidado, mas numa prova destas nunca se sabe e agora é real: Cheguei, está feito!
(Continua)

Comentários

  1. Isto de escrever, e ainda por cima magistralmente, por capítulos não se faz!
    Ficamos para aqui agarrados á espera do próximo episódio!
    E ainda se inventou um técnica nova de começar pelo fim! Já sabemos quem é o “assassino” agora ficamos a espera de ver como se efectuou o “crime” e como o “bandido” foi descoberto.
    Parabéns pela prova e pelo extraordinário texto!
    Francamente nem sei o que é mais difícil, se ter feito essa dura prova ou ter capacidade para escrever tão bem.
    Venham mais capítulos que a gente morre para aqui de ansiedade!

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    1. Obrigado Jorge, com estes elogios todos ainda tenho um bloqueio de escritor...
      Comecei pelo fim porque tinha uma certa urgência em exprimir aqueles sentimentos que nos invadem nos últimos metros.
      Mais uma vez, obrigado pelas palavras.

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  2. Grande Ricardo, compreendo a prioridade desta história contada ao contrário, o segredo mental está ali mesmo naqueles últimos kms e por isso vão ser este que vão perdorar na memória, lembrar-me eu que ouve um atleta que percorreu mais de 100kms e foi desistir a pouco mais de 1km da meta completamente "passado" por aquele final terrível, e a noite bem carregada de escuro bem ajudou a uma certa desorientação, eu que o diga.
    Venha o resto história que por certo será muito mais agradável. Fico feliz e satisfeito por teres terminado com um sentimento tão arrebatador de satisfação e felicidade. Abraço.

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    1. Joaquim,
      E o resto da história ainda vai falar de si, e vai ficar surpreendido com algumas coisas que lhe aconteceram...
      Abraço,
      (estou aqui a fazer um suspense...)

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  3. Fantástico! :) Quero a continuação! Parabéns Ricardo!

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    1. Olá Susana,
      A continuação é já a seguir...
      E tu quando voltas às corridas?
      Beijinhos.

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    2. Olá Ricardo! Vou participar na Corrida da OTA, já no próximo fim-de-semana com o meu pai. Tudo de bom, beijinhos

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  4. Ricardo

    O teu blogue tem um título sugestivo "Aguenta-te Sempre". Foi o que fizeste. Falas em feridas, falas no sobe e desce, falas no km mais comprido existente (essa de indicar que falta um km distante do km em falta para terminar deve ser inédito), mas falas também no querer, na vontade sofredora de todos os músculos e articulções que te levaram ao fim.

    "Non ou a Vã Glória de Mandar" é um filme. Como todos os filmes de Manuel de Oliveira (embora este tenha ação) são lentos que se em vários aspetos se pode assimilar ao que por momentos se passou neste trail, não há dúvida que o melhor título para ti (e para todos os companheiros) é aquele que defines:

    "Ricardo e a Vanglória de Acabar"

    Uma vanglória de orgulho por tantas adversidades vencidas.

    Parabéns!

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    1. Mário,
      Obrigado pelas palavras.
      Nunca vi esse filme, mas eu chamo-lhe vanglória, porque é individual, é uma glória de chegar ao fim, mas que não tem utilidade nenhuma.
      Afinal de contas: para que serve correr 100Kms? É o que a maioria das pessoas perguntas. Porquê? Qual a utilidade?
      Nada. A minha melhor resposta é: Se tens de fazer a pergunta, nunca vais perceber a resposta.
      Abraço.

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