100Km de Biel/Bienne (4)

O percurso continuava na sua maioria por terra com muita gravilha e pedras que me castigavam os pés e os tornozelos. Nesta altura em que escrevo (18JUN), uma semana depois da prova, a única mazela que tenho é uma pequena dor na parte de fora do tornozelo direito. Claro que no dia seguinte à corrida a dor era generalizada, mas o que mais me consumia eram as dores nos pés e tornozelos. Fiz também algumas feridas que nunca me incomodaram: uma assadura entre as virilhas, umas pequenas na barriga por causa do cinto de hidratação, e acima do joelho por causa das coxas elásticas. Tirando isso nada mais. Os pés ficaram doridos mas sem nenhuma bolha, acho que isso se deve à excelência das meias e também das sapatilhas que usei. Apesar de não me terem livrado das dores dos pés e tornozelos, considero que são muito boas, tendo em atenção a diferença de preços entre as que usei as que teriam sido mais indicadas para ali. E não é garantido que outras sapatilhas seis vezes mais caras me fizessem chegar ao fim sem essas dores.
Penúltimo abastecimento. «Paulo, vamos embora, quero fazer abaixo das 13h30m.» “Respiro fundo e lembro-me da força que guardo dentro do meu corpo e espero que ela ouça.” E começo um contra-relógio, a única vez na prova em que me preocupei com o tempo final.
Último abastecimento: o mais rápido de todos.
Último quilómetro: a foto mais aguardada:
“É na busca mágica do último quilómetro que todos nós corremos.”
Vamos para a meta. A corrida revigorante dos últimos quilómetros deixaram-me com folga mais que suficiente para acabar abaixo das 13h30m. Quero saborear este quilómetro. Uma filmagem. A conversa final da prova:
- Gostaste? – Perguntei ao meu irmão.
- Gostei, para o ano vou eu correr.
Absorveu toda a emoção da distância.
-Alguma vez pensaste desistir? – Pergunta ele.
- Não, e tu? – Não foi fácil para ele, não estava habituado à bicicleta, e que bicicleta…
- Epá, aos 50 km já estava fartinho. Dos 75 aos 90 foi quando te custou mais, não foi?
- Não consigo dizer quais os quilómetros que me custaram mais.
O último quilómetro está a chegar ao fim. Ao fundo o meu irmão Pedro já acenava. «Já aí vem, conseguiu!». A Lorena nada admirada: «Eu sabia que conseguias. Consegues sempre!» diz isto como se tivesse sido uma corrida à volta da marina de Angra.
Ainda uma recta para ser aplaudido. Provavelmente muitos familiares e amigos de atletas que também estão quase a chegar. Eu também aplaudo: a prova, a organização, os apoiantes. Levanto as mãos em sinal de vitória. O locutor diz o meu nome: Ricardo Baptista, mais algumas palavras em alemão que eu não entendi. Apesar do cansaço, apesar de algumas dores: adorei, foi um espectáculo. Se pudesse se a vida permitisse: para o ano voltava a fazê-los. Uma medalha que o meu irmão Pedro desembrulha e me põe ao pescoço. Ainda tenho de ir buscar o diploma e a t-shirt que diz finalista. Passo pelos balneários e não resisto a um banho de água fria. Regresso a casa para descansar um pouco.
À noite o jantar é no Centro Português de Neuchâtel. Um bife à café paris. Muito bem servido embora que demorado. Enquanto espero pelo jantar vai passando pela memória os 100 km que tinha acabado de fazer. Uma experiência que fica marcada na memória. O Paulo está com vontade de para o ano ser ele a correr. O andar não era o melhor, era o possível. Parecia que tinha alguma deficiência. A levantar e a descer escadas era a pior altura: Ai, ai, ai, ai.
A medalha: oferecia ao meu irmão, acho que ele a mereceu. O facto de não estar habituado a andar de bicicleta e de me ter acompanhado com uma coisa daquelas. Também tinha dores.
Nos dias que seguiram sentia-me um herói. Eu sei que não sou: qualquer um é capaz de uma coisa destas. Sinto-me orgulhoso pelo meu feito. Gosto de ver a reacção das pessoas ao saberem, “100 km?”, e eu cá para mim:
- Até que nem foi muito difícil!

Comentários

  1. Grande Ricardo;
    PARABENS PELO FEITO.
    Não e para todos que percorrem a distancia. Não e só correr, também ter muita força de vontade, e estar bem psicologicamente.
    Forte abraço
    Vitor

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  2. Olá Ricardo
    de facto qualquer um é capaz de correr 100 quilómetros, só que tu já os correste e a grande maioria ainda não, parabéns mesmo.
    Belo relato, correr muitos quilómetros apura a capaciadde de escrever, será?
    Abraço.
    António Almeida

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  3. Amigo Ricardo, só posso enviar-te uma saudação de grande admiração pela conquista desta mítica distância, é extensiva também para o teu fiel irmão que não sendo decisivo deu um grande contributo moral e material.
    Desejo agora boa recuperação.
    Abraço

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  4. Caro Ricardo;

    Fantástico!!!!!! adorei ler estes textos que relatam uma aventura da corrida. Uma dupla que se comportou muito bem.

    parabéns

    José Xavier

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  5. Mais uma vez magistral!
    Emocionei-me!
    Não sei se quem nunca se meteu “numas andanças” destas consegue sentir a mesma emoção ao ler o texto.
    Mas quem já alguma vez se aventurou por esses caminhos sente um arrepio na “espinha”.
    Vem-me a memória a frescura daquele início de noite magica em Vila Real de Santo António, no já distante ano de 1987, quando corri o último segundo das 12 horas e o último metro dos meus 101,605 quilómetros.
    É na busca mágica do último quilómetro que todos nós corremos. Como fico feliz por estas minhas palavras terem sido fonte de inspiração para o final de tão bela aventura.
    Agora tem de recuperar, saborear o feito e começar a sonhar com o próximo último quilómetro.
    Um grande abraço deste seu amigo sempre com alma de ultra-maratonista (alma que o esqueleto já não quer lá muito mas quem sabe se com este seu relato tão inspirador não volto a fazer um sonho!).

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  6. Ricardo,

    Muitos parabéns...

    Grande relato e já estou com o bichinho...

    Abraço,

    Rui

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  7. caro ricardo,
    grande feito e muito bem relatado. os meus parabéns. a máxima querer é poder aplica-se na íntegra a esta odisseia.
    ando a preparar-me para a minha primeira maratona e, ao ler estes relatos, fiquei ainda com mais vontade de conquistar o último metro dos 42,195 km que tenho pela frente.
    abraço.
    PauloL
    kmepalavras.wordpress.com

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  8. Amigo, brother...

    Por vezes andamos tao envolvidos nas nossas "vidinhas" que nao nos lembramos das coisas que nos fazem realmente ser felizes.
    Tu tens o dom de fazer com que cada dia seja merecido, seja diferente e acima de tudo seja bem vivido.
    Muitos parabens e sinceramente em nada fico surpreendido com o teu feito.Sei que és capaz disso e mt mais, basta que decidas faze-lo.
    Nao posso deixar de sentir uma enorme "inveja" saudavel. Quem sabe se para o ano nao te acompanho, numa parte do teu percurso, se para isso tiver saude. Um grande, saudoso e forte abraço...deste teu mano. Miguel

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  9. Olá, Ricardo.
    Muitos Parabéns pela maravilhoso feito que conseguiste e pela excelente narrativa.
    Não existem heróis a tempo a inteiro, mas no fim acho que te tornas-te um herói acidental, por conseguires tão grandioso feito, só ao alcance de alguns.
    Um grande Abraço.

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  10. Brutal .... Obrigado por partilhares a tua experiência, é claro que eu ou outro qualquer somos capazes de fazer 100 km, mas do capaz ou ter feito…..

    Somando estas palavras a “Já lá moras! T’ás fodido!”fico mesmo com vontade de fazer o mesmo.

    Bons treinos!
    Jorge Almeida

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  11. Fantástico, Ricardo.
    Acabei de ler, de enfiada, os 4 capítulos desta grande aventura, onde de uma forma magnífica, conseguiste transmitir as emoções vividas ao longo de tantas horas de esforço.
    Fizeste-me "inveja" ao saber fazer uma boa gestão das energias, manter sempre o discernimento (até deu para te lembrares do que me aconteceu nos 100/24 de Madrid -obrigado pela referência) e concluir de forma brilhante uma prova destas.
    Esta é daquelas que marcam qualquer um e a nobreza do teu gesto em ofereceres a medalha ao teu irmão que te acompanhou e deu força, revela bem a grandeza que há em ti.
    Muitos Parabéns, Ricardo e um Grande Abraço.
    FA

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